I. Introdução: Quando o Estado vacila
O
tratamento das gémeas luso-brasileiras com o medicamento Zolgensma, considerado
um dos mais caros do mundo, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, desencadeou
uma tempestade política, ética e institucional. O episódio, inicialmente
envolto em silêncio, tornou-se um dos casos mais mediáticos da década, expondo
fragilidades do sistema de saúde, zonas cinzentas da administração pública e
suspeitas de favorecimento político.
A
questão central permanece de como poderá alguém ser condenado neste processo? A
resposta exige mais do que uma análise jurídica e requer uma leitura crítica da
cultura institucional, da arquitectura normativa e da ética pública que
sustentam o Estado de Direito.
II. O
enredo: entre urgência clínica e privilégio institucional
As
gémeas, diagnosticadas com atrofia muscular espinal, chegaram a Portugal em Dezembro
de 2019. O acesso ao tratamento foi célere, excepcional e, segundo auditorias
internas, fora dos procedimentos habituais. A marcação da primeira consulta
hospitalar pela Secretaria de Estado da Saúde foi considerada a única violação
formal das regras
A
Inspecção-geral das Actividades em Saúde concluiu que o acesso à neuropediatria
foi ilegal
A
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para apurar responsabilidades
reconheceu uma “intervenção especial” da Casa Civil da Presidência da
República, mas não constatou ilegalidades formais. O filho do Presidente, Nuno
Rebelo de Sousa, terá enviado um correio electrónico em 2019 alertando para a
situação das crianças. A ligação institucional, embora informal, levanta
questões sobre influência, excepção e responsabilidade.
III.
A arquitectura jurídica do caso
Do
ponto de vista penal, a possibilidade de condenação depende da existência de
dolo, violação de deveres funcionais e prejuízo para o interesse público.
Os
crimes eventualmente em causa incluem:
·
Prevaricação
de titular de cargo público
· Abuso de poder
· Violação de normas administrativas
· Favorecimento indevido
Contudo,
até ao momento, não há arguidos formalmente constituídos. O Ministério Público
continua a investigar, mas a ausência de imputações concretas revela a
dificuldade de transformar suspeitas em acusações sustentadas.
IV. A
ética da excepção
Mesmo
que não se prove crime, o caso levanta uma questão ética incontornável: pode o
Estado tratar cidadãos de forma desigual, mesmo em nome da urgência clínica? A
resposta exige uma reflexão sobre o princípio da igualdade, a transparência dos
critérios e a legitimidade das decisões excepcionais.
A
ética pública não se mede apenas pela legalidade mas pela coerência, justiça e confiança.
Quando o Estado actua fora das regras, mesmo com boas intenções, compromete a
integridade institucional.
V. O
papel da comunicação social
A
divulgação do caso pela TVI e pela CNN Portugal foi decisiva para o escrutínio
público. As reportagens revelaram documentos, testemunhos e contradições que
colocaram o poder político sob pressão. A mãe das gémeas, por sua vez,
processou o médico denunciante e os jornalistas envolvidos, alegando difamação,
violação de privacidade e maus-tratos psicológicos. O conflito entre liberdade
de imprensa e protecção da intimidade é antigo, mas neste caso assume contornos
delicados. A exposição mediática das crianças, embora involuntária, foi
consequência directa da opacidade institucional. A imprensa cumpriu o seu papel
mas o Estado, nem tanto.
VI. A
fronteira entre ilegalidade e irregularidade
Um dos
elementos mais controversos do caso reside na distinção entre ilegalidade
formal e irregularidade administrativa. A Inspecção-geral das Actividades em
Saúde (IGAS) concluiu que houve uma violação das regras de acesso à consulta
hospitalar, mas não identificou crime. A Comissão Parlamentar de Inquérito
reforçou essa leitura, apontando para uma “intervenção excepcional” sem
consequências penais directas.
Esta
fronteira é juridicamente delicada. A ausência de dolo, de prejuízo mensurável
ou de benefício pessoal pode impedir a configuração de crime. No entanto, a
existência de favorecimento institucional, mesmo que não tipificado penalmente,
compromete a equidade do sistema. A justiça não se mede apenas pelo Código
Penal mas também pela coerência das práticas públicas.
VII.
A arquitectura da impunidade
O caso
das gémeas revela um padrão recorrente na administração pública portuguesa que
é a dificuldade em responsabilizar decisores políticos por aptos que, embora
irregulares, não configuram crime. A cultura institucional tende a proteger os
seus próprios agentes, invocando tecnicidades, zonas cinzentas e interpretações
benevolentes.
Esta arquitectura
da impunidade não é explícita mas estrutural. Resulta da fragmentação
normativa, da lentidão processual e da ausência de mecanismos eficazes de
controlo. Quando o sistema não consegue punir, mesmo quando há evidência de
favorecimento, a confiança pública é corroída.
VIII.
A excepção como norma
A
intervenção da Presidência da República, embora informal, foi decisiva para o
acesso das gémeas ao tratamento. O correio electrónico enviado pelo filho do
Presidente, a articulação com a Secretaria de Estado da Saúde e a celeridade do
processo revelam uma capacidade de mobilização que não está ao alcance do
cidadão comum.
Quando
a excepção se torna prática recorrente, o princípio da igualdade é
comprometido. O Estado deve tratar todos os cidadãos com imparcialidade,
especialmente em contextos de saúde pública. A criação de atalhos
institucionais, mesmo que bem-intencionados, fragiliza o sistema e legitima a
desigualdade.
IX. O
silêncio como estratégia institucional
Durante
meses, o caso foi mantido em silêncio. As autoridades não prestaram
esclarecimentos, os documentos não foram divulgados, e as decisões foram
tomadas sem transparência. Este silêncio não foi apenas omissão mas sim estratégia.
A gestão da informação tornou-se instrumento de contenção política.
A
opacidade institucional é incompatível com a democracia. O Estado deve
explicar, justificar e assumir. Quando se esconde, mesmo que por prudência,
alimenta a suspeita. A transparência não é risco mas condição de legitimidade.
X. A
judicialização da política
A
transformação de casos políticos em processos judiciais é fenómeno global. Em
Portugal, o caso das gémeas é exemplo de como decisões administrativas podem
gerar investigações criminais, com impacto directo na reputação de figuras
públicas. A judicialização, embora necessária em certos contextos, pode também
ser sintoma de falhas na responsabilização política.
O
Parlamento, enquanto órgão de escrutínio, deve ser capaz de apurar
responsabilidades sem depender exclusivamente da justiça penal. A CPI cumpriu
parte dessa função, mas a ausência de consequências concretas revela os limites
do modelo. A política deve ser capaz de se autorregular e de se
responsabilizar.
XI. A
confiança pública como bem jurídico
A
confiança dos cidadãos nas instituições públicas é um dos pilares invisíveis do
Estado de Direito. Quando decisões excepcionais são tomadas sem transparência,
mesmo que motivadas por razões clínicas ou humanitárias, esse capital simbólico
é afectado. O caso das gémeas não compromete apenas regras administrativas mas
também a percepção de justiça, equidade e imparcialidade.
A
confiança pública é um bem jurídico difuso, difícil de quantificar, mas
essencial para a legitimidade democrática. A sua erosão não se dá apenas por
escândalos mas também por silêncios, omissões e incoerências. O Estado, ao
agir, deve proteger esse bem com rigor e responsabilidade.
XII.
A ausência de responsabilização como sintoma
Até ao
momento, ninguém foi formalmente acusado, julgado ou condenado no âmbito deste
processo. A ausência de responsabilização, embora juridicamente defensável, é
politicamente inquietante. Revela um sistema que, mesmo quando reconhece
irregularidades, hesita em atribuir consequências.
Este
padrão não é novo. Em múltiplos casos mediáticos, a justiça portuguesa tem
demonstrado dificuldade em transformar suspeitas em condenações. A exigência
probatória, a fragmentação institucional e a cultura de protecção mútua entre
elites contribuem para esse bloqueio. O caso das gémeas é mais um sintoma não
uma excepção.
XIII.
A ética da responsabilidade
A
responsabilidade não se limita à esfera penal. Há responsabilidade política,
institucional e simbólica. Quando um membro do governo intervém fora dos canais
formais, quando a Presidência da República influencia decisões clínicas, quando
o sistema permite excepções sem critérios claros há responsabilidade. Mesmo que
não haja crime, há dever de explicação, de reparação e de reforma.
A
ética da responsabilidade exige que os titulares de cargos públicos assumam as
consequências dos seus actos, mesmo quando não são juridicamente puníveis. A
democracia não se sustenta apenas na legalidade sustenta-se na integridade.
XIV.
O futuro da regulação clínica e institucional
O caso
das gémeas deve servir como ponto de partida para uma reforma profunda dos
mecanismos de regulação clínica e institucional.
É necessário:
·
Estabelecer
critérios transparentes para decisões excepcionais em saúde pública
·
Reforçar
os mecanismos de controlo interno e externo nas unidades hospitalares
·
Clarificar
os limites da intervenção política em processos clínicos
·
Criar
canais formais para pedidos urgentes, com rastreabilidade e supervisão
A
regulação não deve impedir a compaixão mas deve garantir que ela não se
transforma em privilégio.
XV.
Conclusão: entre compaixão e equidade
O caso
das gémeas luso-brasileiras é complexo, sensível e paradigmático. Envolve
crianças, saúde, política, justiça e comunicação social. A possibilidade de
condenação formal é incerta mas a necessidade de responsabilização ética é
evidente.
Portugal precisa de um Estado que saiba cuidar sem favorecer, que saiba decidir sem ocultar e que saiba proteger sem discriminar. A compaixão é virtude mas só se for acompanhada de equidade. A justiça, neste caso, não será medida apenas por sentenças mas sim pela capacidade de aprender, reformar e reconstruir.
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