Jorge Rodrigues Simão
2026
Introdução
O Julgamento
de Nuremberga, realizado entre Novembro de 1945 e Outubro de 1946, constitui um
marco incontornável na história do Direito Internacional e da justiça global.
Pela primeira vez, líderes de um regime derrotado foram julgados por um
tribunal internacional por crimes cometidos não apenas contra outros Estados,
mas contra a própria humanidade. Este julgamento não foi apenas uma resposta
aos horrores da II Guerra Mundial, mas também um ponto de viragem na forma como
a comunidade internacional encara a responsabilidade individual, a soberania
estatal e os limites da guerra. O presente texto propõe-se a analisar, com
profundidade e rigor, os múltiplos aspectos do Julgamento de Nuremberga.
Partindo do contexto histórico que o tornou necessário, exploraremos os
fundamentos jurídicos que sustentaram a sua legitimidade, os procedimentos adoptados,
os principais réus e os veredictos proferidos. Em seguida, examinaremos o
impacto imediato do julgamento na ordem internacional do pós-guerra, bem como o
seu legado duradouro, nomeadamente na criação de tribunais penais
internacionais e na consolidação do conceito de “crimes contra a humanidade”.
Por fim, reflectiremos sobre as críticas e controvérsias que o julgamento
suscitou, e sobre a sua relevância contínua no século XXI. Este texto será
desenvolvido em oito capítulos principais, além da introdução e da conclusão. A
abordagem será interdisciplinar, combinando perspectivas históricas, jurídicas,
políticas e éticas, com o objectivo de oferecer uma visão abrangente e crítica
deste acontecimento seminal.
CAPÍTULO I
O contexto histórico do Julgamento de Nuremberga
1.1 A
II Guerra Mundial e os crimes do regime nazi
A II Guerra
Mundial, que teve início em Setembro de 1939 com a invasão da Polónia pela
Alemanha nazi, foi o conflito mais destrutivo da história da humanidade. Ao
longo de seis anos, envolveu dezenas de países, causou a morte de mais de 60
milhões de pessoas e deixou um rasto de destruição sem precedentes. No centro
deste conflito esteve o regime liderado por Adolf Hitler, cuja ideologia
expansionista, racista e totalitária conduziu à implementação de políticas de
extermínio sistemático, perseguição de minorias, escravização de populações e
destruição de culturas inteiras. Entre os crimes mais hediondos cometidos pelo
regime nazi destaca-se o Holocausto, o genocídio de cerca de seis milhões de
judeus europeus, levado a cabo através de campos de concentração e extermínio
como Auschwitz, Treblinka e Sobibor. Para além dos judeus, outras minorias
foram também alvo de perseguição e extermínio, incluindo ciganos, homossexuais,
deficientes físicos e mentais, opositores políticos e prisioneiros de guerra
soviéticos. A brutalidade da guerra não se limitou aos campos de extermínio. A Wehrmacht
e as SS cometeram inúmeros crimes de guerra em territórios ocupados, incluindo
massacres de civis, destruição de aldeias, deportações forçadas e tortura
sistemática. A guerra de agressão, conduzida com o objectivo de conquistar o
“espaço vital” (Lebensraum) para o povo alemão, violou os princípios
fundamentais do direito internacional e da convivência entre nações.
1.2 A
resposta dos Aliados: da vitória militar à justiça internacional
Com a
rendição incondicional da Alemanha em Maio de 1945, os Aliados compostos pelos Estados
Unidos, Reino Unido, União Soviética e França enfrentaram a questão de como
lidar com os principais responsáveis pelos crimes cometidos durante a guerra. A
simples punição sumária ou execução extrajudicial foi considerada por alguns,
mas prevaleceu a ideia de que a justiça deveria ser feita através de um
julgamento público, justo e baseado em normas jurídicas reconhecidas. A decisão
de realizar um julgamento internacional foi tomada ainda durante a guerra, na
Conferência de Moscovo (1943) e reafirmada na Conferência de Ialta (Fevereiro
de 1945). Em Agosto de 1945, foi assinado o Acordo
de Londres, que estabeleceu o Tribunal Militar Internacional (TMI) e
definiu o seu estatuto, competências e procedimentos. A escolha de Nuremberga
como sede do julgamento teve um forte simbolismo. A cidade fora um dos bastiões
do regime nazi, palco dos congressos anuais do Partido Nacional-Socialista e da
promulgação das infames Leis de Nuremberga, que institucionalizaram a discriminação
racial. Transformar esse espaço num tribunal de justiça era uma forma de
reverter o significado histórico do local.
1.3 O
desafio jurídico e moral
O
Julgamento de Nuremberga representou um desafio sem precedentes para o direito
internacional. Nunca antes um tribunal internacional tinha sido criado para
julgar indivíduos por crimes cometidos em nome de um Estado. A ideia de
responsabilidade penal individual, embora presente em alguns tratados e
convenções, nunca tinha sido aplicada de forma sistemática a líderes políticos
e militares. Além disso, os crimes cometidos pelo regime nazi ultrapassavam as
categorias tradicionais do direito de guerra. Era necessário criar novas
categorias jurídicas como os “crimes contra a humanidade” e definir os seus
contornos. Esta inovação jurídica levantava questões complexas sobre retroactividade,
soberania, imparcialidade e universalidade da justiça. Do ponto de vista moral,
o julgamento era também uma tentativa de restaurar a dignidade humana, afirmar
os valores da civilização e responder à barbárie com racionalidade e
legalidade. Era uma aposta na força do direito como instrumento de reconstrução
da ordem internacional e de prevenção de futuras atrocidades.
CAPÍTULO II
A estrutura jurídica do Tribunal Militar Internacional
2.1 O
Acordo de Londres e o Estatuto do Tribunal
O
Tribunal Militar Internacional (TMI) foi formalmente instituído pelo Acordo de
Londres, assinado a 8 de Agosto de 1945 pelos quatro principais poderes aliados
cimo os Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética e França. Este acordo
estabeleceu o estatuto jurídico do tribunal, definindo a sua composição,
competências, procedimentos e os crimes que seriam julgados como afirmámos. O
Estatuto do TMI representou uma inovação sem precedentes no direito internacional.
Pela primeira vez, foi criado um tribunal com jurisdição para julgar indivíduos
por crimes cometidos em nome de um Estado. O tribunal seria composto por juízes
dos quatro países signatários, com poderes para conduzir o processo, ouvir
testemunhas, avaliar provas e proferir sentenças. A legitimidade do tribunal
assentava na ideia de que os crimes cometidos pelo regime nazi eram de tal
gravidade que transcendiam as fronteiras nacionais e exigiam uma resposta da
comunidade internacional. O princípio da justiça universal foi invocado como
fundamento ético e jurídico para a criação do TMI.
2.2
Os três tipos de crimes julgados
O
Estatuto do TMI definiu três categorias principais de crimes:
a) Crimes contra a paz
Esta
categoria incluía o planeamento, preparação, iniciação e condução de uma guerra
de agressão, ou de uma guerra em violação de tratados, acordos ou garantias
internacionais. Era uma inovação jurídica, pois até então o direito
internacional não previa sanções penais para a agressão militar. O julgamento
de Nuremberga estabeleceu que iniciar uma guerra injustificada era, em si, um
crime punível.
b) Crimes de guerra
Os
crimes de guerra referiam-se a violações das leis e costumes da guerra, tal
como definidos nas Convenções de Haia e de Genebra. Incluíam o assassinato de
prisioneiros de guerra, a destruição injustificada de cidades e aldeias, a
deportação de populações civis, o uso de trabalho forçado e outras práticas
contrárias ao direito humanitário.
c) Crimes contra a humanidade
Esta
foi a categoria mais inovadora e controversa. Incluía o assassinato,
extermínio, escravização, deportação e outros actos desumanos cometidos contra
populações civis, antes ou durante a guerra. Também abrangia perseguições
políticas, raciais e religiosas. O conceito de “crimes contra a humanidade” foi
introduzido para lidar com atrocidades que não se enquadravam nas categorias
tradicionais do direito de guerra, como o genocídio dos judeus.
2.3
Princípios jurídicos inovadores
O
Julgamento de Nuremberga introduziu vários princípios jurídicos que viriam a
moldar o direito penal internacional nas décadas seguintes:
a) Responsabilidade penal individual
Um dos
pilares do julgamento foi a afirmação de que indivíduos, e não apenas Estados,
podem ser responsabilizados por crimes internacionais. Esta ideia rompeu com a
tradição de imunidade dos líderes políticos e militares, estabelecendo que
ninguém está acima da lei.
b) Irrelevância da posição oficial
O
tribunal rejeitou a defesa baseada na posição oficial dos réus. O facto de
serem ministros, generais ou altos funcionários não os eximia de
responsabilidade. Este princípio foi consagrado no artigo 7.º do Estatuto do
TMI: “A posição oficial de um acusado, quer como Chefe de Estado ou como
funcionário responsável de um Governo, não o isenta de responsabilidade nem
atenua a pena.”
c) Recusa da defesa de obediência a ordens superiores
Outro
princípio fundamental foi a rejeição da defesa baseada na obediência a ordens
superiores. O tribunal reconheceu que, embora a disciplina militar seja
essencial, existe um limite moral e jurídico para a obediência. Os réus não
podiam justificar crimes atrozes com o argumento de que estavam apenas a
cumprir ordens.
d) Retroatividade e legalidade
Uma
das críticas ao julgamento foi a alegada retroactividade das normas aplicadas.
Os crimes contra a humanidade, por exemplo, não estavam codificados como tal
antes da guerra. No entanto, o tribunal argumentou que os actos julgados
violavam princípios fundamentais da humanidade e do direito internacional consuetudinário,
e que os réus sabiam ou deviam saber que estavam a cometer crimes.
2.4
Procedimentos processuais e garantias
O
julgamento foi conduzido com base em normas processuais que procuravam garantir
a imparcialidade e o direito de defesa. Os réus foram informados das acusações,
tiveram acesso a advogados, puderam apresentar testemunhas e documentos, e
foram interrogados em público. As sessões foram registadas e traduzidas
simultaneamente em quatro línguas como o inglês, francês, russo e alemão. Apesar
destas garantias, o julgamento foi criticado por alguns juristas pela sua
natureza política e pela ausência de um verdadeiro contraditório em certos
momentos. A presença dos juízes dos países vencedores e a exclusão de
representantes neutros levantaram dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.
CAPÍTULO III
Os réus de Nuremberga: perfis, acusações e veredictos
3.1 Selecção
dos réus
O
Tribunal Militar Internacional de Nuremberga foi concebido para julgar os
principais responsáveis pelos crimes cometidos pelo regime nazi. A selecção dos
réus obedeceu a critérios políticos, militares e administrativos, visando
aqueles que desempenharam papéis centrais na estrutura do poder nazi. Foram
inicialmente acusados 24 indivíduos e seis organizações, embora nem todos
tenham sido efectivamente julgados pois alguns suicidaram-se antes do início do
processo, outros foram considerados incapazes de responder judicialmente. Entre
os réus estavam figuras proeminentes como Hermann Göring, número dois do regime
e comandante da Luftwaffe; Rudolf Hess, antigo vice de Hitler; Joachim von
Ribbentrop, ministro dos Negócios Estrangeiros; Wilhelm Keitel, chefe do Alto
Comando das Forças Armadas; Alfred Rosenberg, ideólogo do partido; e Albert
Speer, ministro do Armamento. As organizações acusadas incluíam o Partido Nazi,
a SS (Schutzstaffel), a Gestapo, o Alto Comando Militar, o Governo do Reich e o
Corpo de Líderes do Partido. A acusação pretendia demonstrar que estas
estruturas funcionavam como instrumentos de criminalidade sistemática.
3.2
Acusações específicas
Cada
réu foi acusado com base nas três categorias de crimes definidas pelo Estatuto
do TMI como crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
A acusação apresentou provas documentais, testemunhos e registos oficiais que
demonstravam o envolvimento directo ou indirecto dos réus na planificação,
execução e legitimação dos crimes.
Por exemplo:
·
Hermann Göring
foi acusado de participar na planificação da guerra de agressão, na criação dos
campos de concentração e na pilhagem de bens culturais nos territórios
ocupados.
·
Joachim von Ribbentrop foi responsabilizado pela assinatura de tratados que encobriam agressões
militares e pela facilitação da deportação de judeus.
·
Wilhelm Keitel
foi acusado de emitir ordens que autorizavam execuções sumárias, destruição de
aldeias e maus-tratos de prisioneiros.
·
Alfred Rosenberg foi julgado pela sua influência ideológica na perseguição racial e pela
administração dos territórios ocupados no Leste.
·
Albert Speer,
embora reconhecendo a culpa colectiva do regime, tentou dissociar-se dos crimes
mais graves, alegando desconhecimento das práticas de extermínio.
3.3
Argumentos da defesa
A
defesa dos réus baseou-se em vários argumentos jurídicos e morais:
a) Obediência a ordens superiores
Muitos
réus alegaram que estavam apenas a cumprir ordens, invocando o princípio da
hierarquia militar e administrativa. Esta defesa foi rejeitada pelo tribunal,
que afirmou que existe uma responsabilidade moral e jurídica que transcende a
obediência cega.
b) Ausência de normas jurídicas prévias
Alguns
advogados argumentaram que os crimes contra a humanidade não estavam codificados
antes da guerra, e que aplicar essas normas retroactivamente violava o
princípio da legalidade. O tribunal respondeu que os actos cometidos violavam
normas fundamentais do direito internacional consuetudinário e da consciência
humana.
c) Imunidade de chefes de Estado
Foi
também invocada a imunidade dos líderes políticos, com base na soberania
estatal. O tribunal rejeitou esta tese, afirmando que a soberania não pode ser
escudo para a prática de crimes atrozes.
d) Inexistência de responsabilidade pessoal
Alguns
réus tentaram dissociar-se das decisões políticas e militares, alegando que não
tinham poder executivo ou que desconheciam os crimes. O tribunal avaliou caso a
caso, distinguindo entre responsabilidade directa, indirecta e negligência
consciente.
3.4
Veredictos e penas
O
julgamento culminou em 1 de Outubro de 1946 com a leitura dos veredictos. Dos
22 réus presentes, 12 foram condenados à morte por enforcamento, três à prisão
perpétua, quatro a penas entre 10 e 20 anos, e três foram absolvidos.
As
penas foram as seguintes:
·
Condenados à morte: Hermann Göring (suicidou-se antes da execução), Joachim von Ribbentrop,
Wilhelm Keitel, Alfred Rosenberg, Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher,
Arthur Seyss-Inquart, Ernst Kaltenbrunner, Alfred Jodl, Fritz Sauckel e Martin
Bormann (julgado à revelia).
· Prisão perpétua: Rudolf Hess, Walther Funk, Erich Raeder.
· Penas de prisão: Karl Dönitz (10 anos), Baldur von Schirach (20 anos), Albert Speer (20 anos), Konstantin von Neurath (15 anos).
· Absolvidos: Hjalmar Schacht, Franz von Papen, Hans Fritzsche.
As
execuções foram realizadas em 16 de Outubro de 1946, na prisão de Spandau, em
Berlim. Os corpos foram cremados e as cinzas espalhadas para evitar a criação
de locais de culto ou memória pelos simpatizantes do regime.
CAPÍTULO IV
O impacto imediato do Julgamento de Nuremberga
4.1 Reacções
políticas e diplomáticas
O
Julgamento de Nuremberga teve um impacto profundo na política internacional do
pós-guerra. A realização de um tribunal internacional para julgar os crimes do
regime nazi foi vista como um passo decisivo na reconstrução da ordem mundial,
baseada em princípios de justiça, responsabilidade e respeito pelos direitos
humanos. Os países aliados apresentaram o julgamento como uma demonstração de
que a vitória militar não implicava vingança, mas sim justiça. A transparência
do processo, a apresentação pública das provas e a fundamentação jurídica das
sentenças contribuíram para reforçar a legitimidade do tribunal aos olhos da
opinião pública internacional. Contudo, nem todas as reacções foram positivas.
Alguns países criticaram o julgamento por ser conduzido exclusivamente pelos
vencedores da guerra, sem participação de Estados neutros ou derrotados. A União Soviética, por exemplo, foi acusada
de hipocrisia por julgar crimes que também cometera, como os massacres de Katyn
ou as deportações em massa. Os Estados Unidos e o Reino Unido foram questionados
pelos bombardeamentos de Dresden, Hamburgo e Hiroshima, que causaram milhares
de mortes civis. Apesar destas críticas, o julgamento foi amplamente
reconhecido como um avanço civilizacional. Estabeleceu um precedente para a
responsabilização de líderes políticos e militares por crimes internacionais, e
lançou as bases para o desenvolvimento de uma justiça penal internacional.
4.2
Repercussões jurídicas
Do
ponto de vista jurídico, o Julgamento de Nuremberga representou uma revolução.
Pela primeira vez, foram codificados e aplicados os conceitos de “crimes contra
a paz”, “crimes de guerra” e “crimes contra a humanidade”. Estes conceitos
passaram a integrar o vocabulário jurídico internacional e foram posteriormente
incorporados em tratados, convenções e estatutos de tribunais internacionais. O
julgamento também influenciou a criação da
Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, encarregada de
codificar os princípios de Nuremberga e desenvolver normas jurídicas
universais.
Em
1950, a comissão publicou os “Princípios de Nuremberga”, que afirmam, entre
outros, que:
·
Qualquer pessoa que cometa um crime
internacional é responsável e pode ser punida.
·
A posição oficial não exime de
responsabilidade.
·
A obediência a ordens superiores não é uma
defesa válida.
·
O direito internacional prevalece sobre o
direito interno em matéria de crimes internacionais.
Estes
princípios tornaram-se pilares do direito penal internacional e foram retomados
em julgamentos posteriores, como os tribunais
para a ex-Jugoslávia e o Ruanda, e no Estatuto de Roma que criou o Tribunal
Penal Internacional.
4.3 Reacções
sociais e culturais
O
julgamento teve também um impacto profundo na sociedade civil e na cultura
jurídica. A divulgação dos horrores cometidos pelo regime nazi, através de
testemunhos, documentos e filmes apresentados no tribunal, chocou o mundo e
contribuiu para a construção de uma memória colectiva sobre o Holocausto e os
crimes da guerra. A imprensa internacional acompanhou o julgamento com atenção,
publicando reportagens, análises e entrevistas. O público teve acesso a
informações detalhadas sobre os crimes, os réus e os argumentos jurídicos, o
que contribuiu para uma maior consciência sobre a importância da justiça
internacional. Na cultura popular, o julgamento inspirou livros, filmes, peças
de teatro e documentários. Obras como “Judgment at Nuremberg” (1961) ajudaram a
manter viva a memória do processo e a reflectir sobre os dilemas éticos e
jurídicos envolvidos.
4.4
Debates e controvérsias
Apesar
do seu impacto positivo, o Julgamento de Nuremberga suscitou vários debates e
controvérsias que persistem até hoje:
a) Justiça dos vencedores
Uma
das críticas mais recorrentes é a de que o julgamento foi uma forma de “justiça
dos vencedores”, em que apenas os derrotados foram julgados. Os crimes cometidos pelos Aliados não foram objecto
de investigação ou punição, o que levanta questões sobre imparcialidade e
universalidade da justiça.
b) Retroatividade das normas
Outra crítica diz respeito à aplicação retroactiva
de normas jurídicas. Os crimes contra a humanidade, por exemplo, não estavam
codificados como tal antes da guerra. Embora o tribunal tenha argumentado que
os actos cometidos violavam princípios fundamentais da humanidade, a questão da
legalidade permanece controversa.
c) Exclusão de outros responsáveis
O
julgamento concentrou-se nos principais líderes do regime nazi, deixando de
fora muitos outros responsáveis por crimes graves. Milhares de funcionários, militares e civis que participaram na máquina
de extermínio não foram julgados, o que levanta questões sobre a extensão da
responsabilidade e a selectividade da justiça.
d) Limitações processuais
Alguns
juristas apontaram limitações processuais no julgamento, como a ausência de um verdadeiro contraditório em certos momentos, a
pressão política sobre os juízes e a dificuldade de garantir imparcialidade num
contexto tão carregado de emoções e interesses.
CAPÍTULO V
O legado jurídico e institucional de Nuremberga
5.1
Consolidação do direito penal internacional
O Julgamento de Nuremberga foi o ponto de
partida para a consolidação do direito penal internacional como ramo autónomo
do direito. Antes de Nuremberga,
o direito internacional centrava-se sobretudo nas relações entre Estados,
regulando tratados, fronteiras, comércio e guerra. Com Nuremberga, passou a
reconhecer-se que indivíduos podem ser sujeitos de direito internacional e
responsabilizados por crimes que violam normas universais. Os princípios
estabelecidos em Nuremberga como a responsabilidade penal individual,
irrelevância da posição oficial, inadmissibilidade da obediência cega,
imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade tornaram-se pilares do
direito penal internacional.
Estes
princípios foram codificados em documentos fundamentais, como:
·
Os
Princípios de Nuremberga (1950), elaborados pela Comissão de Direito
Internacional da ONU.
·
A
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948).
·
As
Convenções de Genebra (1949), que reforçaram o direito humanitário.
·
O
Estatuto de Roma (1998), que criou o Tribunal Penal Internacional.
A
jurisprudência de Nuremberga influenciou também o desenvolvimento de normas
sobre crimes de guerra, crimes de agressão e responsabilidade de comandantes
militares. A doutrina jurídica passou a reconhecer que o direito internacional
não se limita a regular Estados, mas também protege indivíduos e comunidades
contra abusos sistemáticos.
5.2
Criação de tribunais penais internacionais
O
legado institucional de Nuremberga é visível na criação de tribunais penais
internacionais para julgar crimes cometidos em conflitos posteriores.
Entre
os mais relevantes destacam-se:
a) Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ)
Criado em 1993 pelo Conselho de Segurança
da ONU, o TPIJ teve como
missão julgar os responsáveis pelos crimes cometidos durante as guerras nos
Balcãs, incluindo genocídio, limpeza étnica, violações em massa e deportações.
O tribunal aplicou os princípios de Nuremberga e desenvolveu jurisprudência
sobre crimes sexuais, responsabilidade de líderes políticos e militares, e
cooperação internacional.
b) Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR)
Estabelecido em 1994, após o genocídio de
cerca de 800.000 tutsis e hutus moderados, o TPIR aplicou os princípios de Nuremberga
para julgar os responsáveis por um dos maiores massacres do século XX. O tribunal contribuiu para a definição do
crime de genocídio, a responsabilização de líderes religiosos e políticos, e o
reconhecimento da violência sexual como arma de guerra.
c) Tribunal Penal Internacional (TPI)
Criado pelo Estatuto de Roma, adoptado em
1998 e em vigor desde 2002, o TPI é o primeiro tribunal penal internacional permanente, com
jurisdição sobre crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e
crime de agressão. O TPI representa a concretização do ideal de Nuremberga com uma
justiça internacional independente, imparcial e universal. O TPI tem enfrentado
desafios políticos, como a recusa de alguns países em aderir ao Estatuto de
Roma, a dificuldade de executar mandados de captura e as críticas sobre selectividade.
No entanto, continua a ser um instrumento essencial na luta contra a impunidade
e na afirmação dos direitos humanos.
5.3
Reforço dos direitos humanos como norma universal
O
Julgamento de Nuremberga contribuiu decisivamente para a afirmação dos direitos
humanos como norma universal. A exposição pública dos crimes cometidos pelo
regime nazi revelou a necessidade de proteger a dignidade humana contra abusos
sistemáticos, independentemente da nacionalidade, religião ou ideologia. Em 1948, a Assembleia Geral das Nações
Unidas adoptou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, inspirada em grande
parte pelos princípios de Nuremberga. A declaração afirma que todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que ninguém
pode ser submetido a tortura, escravidão ou perseguição arbitrária.
Desde
então, foram criados diversos instrumentos jurídicos para proteger os direitos
humanos, como:
·
O Pacto Internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos (1966).
·
O Pacto Internacional sobre os Direitos
Económicos, Sociais e Culturais (1966).
·
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos
(1950).
·
A Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (1969).
·
A Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos (1981).
Estes
instrumentos reconhecem que os direitos humanos são universais,
interdependentes e inalienáveis, e que os Estados têm o dever de os respeitar,
proteger e promover. O legado de Nuremberga está presente em cada um destes
documentos, como expressão do compromisso da humanidade com a justiça e a
dignidade.
CAPÍTULO VI
A consolidação do conceito de “crimes contra a humanidade”
6.1
Origem e definição inicial
O
conceito de “crimes contra a humanidade” surgiu formalmente no Estatuto do
Tribunal Militar Internacional de Nuremberga, como resposta à necessidade de
enquadrar juridicamente os actos de extermínio, perseguição e violência
sistemática cometidos pelo regime nazi contra civis. Embora existissem
antecedentes históricos como as discussões sobre atrocidades cometidas durante
a I Guerra Mundial foi em Nuremberga que o termo ganhou definição jurídica
clara e aplicação prática. Segundo o artigo 6(c) do Estatuto do TMI, crimes
contra a humanidade incluem “assassinato, extermínio, escravização, deportação
e outros actos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou
durante a guerra, ou perseguições por motivos políticos, raciais ou
religiosos”. Esta definição abrange uma vasta gama de condutas, caracterizadas
pela sua gravidade, sistematicidade e direcionamento contra civis. A introdução
deste conceito representou uma inovação jurídica e ética. Pela primeira vez, o
direito internacional reconhecia que certos actos, mesmo cometidos dentro das
fronteiras de um Estado e contra os seus próprios cidadãos, podiam ser
considerados crimes internacionais e punidos pela comunidade internacional.
6.2
Evolução jurídica após Nuremberg
Após o
julgamento de Nuremberga, o conceito de crimes contra a humanidade foi
progressivamente desenvolvido e codificado em instrumentos jurídicos
internacionais. A Comissão de Direito Internacional da ONU, nos seus Princípios
de Nuremberga (1950), reafirmou a validade do conceito e a sua aplicabilidade
universal. Em 1993, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a
ex-Jugoslávia (TPIJ) retomou o conceito, definindo crimes contra a humanidade
como actos cometidos em larga escala ou de forma sistemática contra qualquer
população civil, com conhecimento do ataque. Esta definição introduziu dois
elementos essenciais: a escala e a sistematicidade dos actos, e o conhecimento
por parte do autor. O Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR), criado
em 1994, aplicou o conceito para julgar os responsáveis pelo genocídio,
reconhecendo que a perseguição sistemática de um grupo étnico constitui um
crime contra a humanidade.
Em
1998, o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI),
consolidou a definição de crimes contra a humanidade, incluindo uma lista
detalhada de actos puníveis, como:
·
Assassinato
·
Extermínio
·
Escravização
·
Deportação ou transferência forçada de
população
·
Prisão ou outra privação grave da
liberdade física
·
Tortura
·
Violação, escravidão sexual, prostituição
forçada, gravidez forçada, esterilização forçada
·
Perseguição contra qualquer grupo ou colectividade
·
Desaparecimento
forçado de pessoas
·
Apartheid
·
Outros actos desumanos de carácter
semelhante
O
Estatuto de Roma exige que os actos sejam cometidos como parte de um ataque
generalizado ou sistemático contra uma população civil, com conhecimento do
ataque. Esta formulação reforça a ideia de que os crimes contra a humanidade
não são actos isolados, mas sim parte de políticas ou práticas organizadas.
6.3
Aplicação prática e jurisprudência
A
aplicação prática do conceito de crimes contra a humanidade tem sido
desenvolvida através da jurisprudência dos tribunais internacionais.
Casos emblemáticos incluem:
·
O
julgamento de Slobodan Milošević, presidente da Sérvia, acusado de crimes
contra a humanidade durante as guerras nos Balcãs.
·
O
julgamento de Jean-Paul Akayesu, presidente da comuna de Taba, no Ruanda,
condenado por genocídio e crimes contra a humanidade.
·
O
julgamento de Charles Taylor, ex-presidente da Libéria, condenado por crimes
contra a humanidade cometidos na Serra Leoa.
Estes
casos demonstram que o conceito de crimes contra a humanidade é aplicável a
líderes políticos, militares e civis, e que a justiça internacional pode alcançar
os mais altos escalões do poder. A jurisprudência tem também contribuído para
clarificar elementos como a intenção, o contexto, a responsabilidade de
comandantes e a natureza dos actos. Por exemplo, foi reconhecido que a
violência sexual pode constituir crime contra a humanidade quando praticada de
forma sistemática e com o objectivo de destruir comunidades.
6.4
Impacto na prevenção de atrocidades
A
consolidação do conceito de crimes contra a humanidade tem tido um impacto
significativo na prevenção de atrocidades. Ao estabelecer normas claras e
universais, o direito internacional envia uma mensagem de que certos actos não
serão tolerados e que os responsáveis serão punidos.
Este
impacto é visível em várias áreas:
a) Políticas de prevenção
Organizações
internacionais, como a ONU, têm desenvolvido políticas de prevenção de
genocídios e crimes contra a humanidade, incluindo mecanismos de alerta
precoce, missões de paz e sanções contra regimes abusivos.
b) Educação e memória
A
inclusão dos crimes contra a humanidade nos currículos escolares, nos museus e
nas campanhas de sensibilização contribui para a construção de uma cultura de
respeito pelos direitos humanos e de rejeição da violência sistemática.
c) Responsabilidade dos Estados
Os
Estados são cada vez mais pressionados a prevenir e punir crimes contra a
humanidade, mesmo quando cometidos por agentes estatais. A doutrina da
“responsabilidade de proteger” (R2P), adoptada pela ONU em 2005, afirma que a
soberania implica responsabilidade, e que a comunidade internacional pode
intervir em casos de atrocidades massivas.
CAPÍTULO VII
Reflexões éticas e filosóficas sobre Nuremberga
7.1 A
justiça como resposta à barbárie
O Julgamento de Nuremberga não
foi apenas um exercício jurídico; foi também uma afirmação ética. Num mundo
devastado pela guerra, pela violência sistemática e pelo genocídio, o tribunal
procurou restaurar a confiança na justiça, na razão e na dignidade humana. A
decisão de julgar os líderes nazis em vez de os executar sumariamente foi, em
si, um gesto de civilização. A justiça de Nuremberga representou uma tentativa
de responder à barbárie com legalidade, de transformar o horror em ensinamento,
e de afirmar que mesmo os crimes mais atrozes não escapam à responsabilidade.
Esta postura ética teve um impacto profundo na forma como a humanidade passou a
encarar os limites da acção política e militar.
7.2 A tensão
entre legalidade e legitimidade
Um dos dilemas centrais do
julgamento foi a tensão entre legalidade e legitimidade. Muitos dos crimes
julgados não estavam codificados como tal antes da guerra, o que levantou
questões sobre a retroactividade das normas. A defesa invocou o princípio da
legalidade penal “nullum crimen, nulla poena sine lege” para contestar a
validade das acusações. O tribunal respondeu com o argumento da legitimidade
moral e jurídica pois os actos cometidos violavam normas fundamentais da
humanidade, reconhecidas pelo direito internacional consuetudinário e pela
consciência universal. Esta posição abriu caminho para uma concepção mais ampla
da justiça, baseada não apenas em normas escritas, mas também em princípios
éticos universais. Este debate continua a
ser relevante. Em contextos contemporâneos, como os julgamentos por crimes de
guerra ou genocídio, a tensão entre legalidade formal e legitimidade moral
permanece presente. Nuremberga ensinou que a justiça internacional deve
equilibrar rigor jurídico com sensibilidade ética.
7.3 A
responsabilidade individual e a ética da obediência
Outro tema filosófico central
em Nuremberga foi a questão da responsabilidade individual. Os réus alegaram,
em muitos casos, que estavam apenas a cumprir ordens, que agiam dentro da
legalidade do regime, e que não tinham autonomia para contestar decisões
superiores. O tribunal rejeitou esta defesa, afirmando que existe uma
responsabilidade moral que transcende a obediência hierárquica. Esta posição
teve implicações profundas na ética profissional, na filosofia política e na
teoria da acção humana. A figura do
“funcionário obediente” deixou de ser vista como neutra, passando a ser
questionada à luz dos valores universais. A ética da obediência foi reexaminada
em estudos posteriores, como os famosos experimentos de Stanley Milgram, que
demonstraram a facilidade com que indivíduos comuns podem cometer actos cruéis
sob pressão de autoridade. Nuremberga antecipou esta reflexão, ao afirmar que a
consciência individual não pode ser anulada pela estrutura institucional.
7.4 A
memória como dever ético
O Julgamento de Nuremberga
contribuiu para a construção de uma memória colectiva sobre os crimes do século
XX. A documentação dos actos, os testemunhos das vítimas, as imagens dos campos
de concentração e as sentenças proferidas tornaram-se parte do património moral
da humanidade. Esta memória não é apenas histórica; é também ética. Recordar Nuremberga
é afirmar que certos limites não podem ser ultrapassados, que a dignidade
humana é inviolável, e que a justiça é um imperativo universal. A memória dos
crimes julgados em Nuremberga serve como advertência, como ensinamento e como
compromisso. Museus, monumentos, currículos escolares e obras culturais mantêm
viva esta memória. A pedagogia da justiça, inspirada em Nuremberga, procura
formar cidadãos conscientes, críticos e comprometidos com os valores da
humanidade.
7.5 A
universalidade da justiça
Nuremberga lançou as bases
para uma concepção universal da justiça. Ao afirmar que certos crimes são
puníveis independentemente da nacionalidade, da ideologia ou da posição
oficial, o tribunal contribuiu para a construção de uma ética global. Esta
universalidade é hoje reconhecida em instrumentos como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, o Estatuto de Roma e os tratados internacionais sobre
genocídio, tortura e discriminação. A justiça internacional, inspirada em Nuremberga,
procura afirmar que todos os seres humanos têm direitos, e que todos os
responsáveis por violá-los devem ser punidos. Contudo, esta universalidade
enfrenta desafios. A selectividade dos julgamentos, a resistência de alguns
Estados à jurisdição internacional, e os conflitos entre culturas jurídicas
diferentes colocam obstáculos à aplicação plena dos princípios de Nuremberga. A
ética global exige diálogo, compromisso e vigilância constante
CAPÍTULO XVIII
Nuremberga na memória colectiva e na cultura contemporânea
8.1 A
construção da memória histórica
O Julgamento de Nuremberga
tornou-se um marco na construção da memória histórica do século XX. A
documentação exaustiva dos crimes cometidos pelo regime nazi, os testemunhos
das vítimas, os registos audiovisuais das sessões e as sentenças proferidas
contribuíram para criar um arquivo moral e jurídico que permanece vivo até
hoje. Esta memória não é apenas institucional; é também cultural e social. Nuremberga
passou a simbolizar a luta contra a impunidade, a afirmação da justiça
internacional e o compromisso com os direitos humanos. A sua evocação é
frequente em discursos políticos, debates académicos, campanhas de
sensibilização e movimentos sociais. A preservação desta memória é essencial
para evitar a repetição dos erros do passado. A pedagogia da memória, inspirada
em Nuremberga, procura formar cidadãos conscientes, críticos e comprometidos
com os valores da humanidade.
8.2 Nuremberga
na educação
O julgamento é estudado em
escolas, universidades e centros de formação jurídica em todo o mundo. É
apresentado como exemplo de justiça internacional, de inovação jurídica e de
resposta ética à barbárie. Os estudantes analisam os fundamentos legais, os
argumentos da acusação e da defesa, os veredictos e o impacto do julgamento na
ordem mundial. A educação sobre Nuremberga inclui também visitas a museus,
exposições, debates e projectos interdisciplinares. O objectivo é promover uma
compreensão profunda dos acontecimentos, estimular o pensamento crítico e
reforçar o compromisso com os direitos humanos. Em muitos países, o estudo de Nuremberga
está integrado nos currículos de História, Direito, Filosofia e Ciências
Políticas. É considerado um caso paradigmático, que permite explorar temas como
responsabilidade individual, justiça internacional, ética da obediência e
memória colectiva.
8.3 Nuremberga
na arte e na cultura popular
O julgamento inspirou inúmeras
obras de arte, literatura, cinema e teatro. Estas representações contribuem
para manter viva a memória dos acontecimentos, sensibilizar o público e reflectir
sobre os dilemas éticos e jurídicos envolvidos. Entre as obras mais conhecidas
destaca-se o filme “Judgment at Nuremberg” (1961), realizado por Stanley
Kramer, que dramatiza os julgamentos dos juízes dos nazis e explora questões
como a responsabilidade moral, a obediência a ordens e a justiça dos
vencedores. O filme teve grande impacto na opinião pública e é frequentemente
utilizado em contextos educativos. Outras obras incluem documentários, romances
históricos, peças de teatro e exposições artísticas. Estas criações abordam
diferentes perspectivas, desde o sofrimento das vítimas até aos conflitos
internos dos réus, passando pela complexidade do processo judicial. A arte tem
o poder de humanizar os acontecimentos, de transmitir emoções e de provocar
reflexão. Ao representar Nuremberga, os artistas contribuem para a construção
de uma consciência histórica global e para a afirmação dos valores universais
da justiça.
8.4 Nuremberga
na política contemporânea
O julgamento é frequentemente
invocado em contextos políticos, como referência à luta contra a impunidade, à
defesa dos direitos humanos e à necessidade de justiça internacional. Líderes
políticos, diplomatas e activistas citam Nuremberga para justificar intervenções
humanitárias, criação de tribunais internacionais e condenação de regimes
autoritários. A evocação de Nuremberga serve também como advertência. Recorda
que a violação sistemática dos direitos humanos pode ser punida, que a
soberania estatal não é escudo para a barbárie, e que a comunidade
internacional tem o dever de agir perante atrocidades. Contudo, esta invocação
nem sempre é consensual. Alguns críticos acusam os Estados de usarem Nuremberga
de forma selectiva, para justificar acções políticas ou militares que não
respeitam os princípios da justiça internacional. A memória de Nuremberga
exige, por isso, responsabilidade, coerência e respeito pelos seus fundamentos
éticos.
8.5 A
consciência histórica global
O Julgamento de Nuremberga
contribuiu para a construção de uma consciência histórica global, baseada na
rejeição da violência sistemática, na afirmação da dignidade humana e na
promoção da justiça universal. Esta consciência é alimentada por instituições,
movimentos sociais, obras culturais e práticas educativas que mantêm viva a
memória dos acontecimentos. A consciência histórica global não é apenas
conhecimento; é também compromisso. Implica reconhecer os erros do passado,
aprender com eles e agir para evitar a sua repetição. Nuremberga é símbolo
desse compromisso, expressão de uma humanidade que, perante o abismo, escolheu
a justiça.
Epílogo
O Julgamento de Nuremberga
representa um dos momentos mais significativos da história contemporânea, não
apenas pela sua dimensão jurídica, mas sobretudo pelo seu alcance ético,
político e simbólico. Realizado num contexto de devastação e perplexidade após
a II Guerra Mundial, o julgamento constituiu uma resposta firme e racional à
barbárie, afirmando que mesmo os crimes mais atrozes podem e devem ser julgados
com base em princípios universais de justiça.
Ao longo deste texto, analisámos o contexto histórico que conduziu ao
julgamento, os fundamentos jurídicos que o sustentaram, os procedimentos adoptados,
os perfis dos réus e os veredictos proferidos. Explorámos o impacto imediato do
julgamento na ordem internacional, as críticas e controvérsias que suscitou, e
o seu legado jurídico e institucional, nomeadamente na criação de tribunais
penais internacionais e na consolidação do conceito de “crimes contra a
humanidade”.
Reflectimos também sobre os
dilemas éticos e filosóficos que Nuremberga levantou, como a tensão entre legalidade
e legitimidade, a responsabilidade individual perante ordens superiores, e o
papel da memória na construção de uma ética global. Por fim, examinámos o
impacto do julgamento na memória colectiva, na educação, na cultura popular e
na política contemporânea, reconhecendo o seu contributo para a formação de uma
consciência histórica universal. O legado de Nuremberga permanece vivo e
relevante. Os princípios ali afirmados continuam a orientar a justiça
internacional, a inspirar movimentos de direitos humanos e a servir de
referência em contextos de conflito e repressão. A sua memória é preservada em
instituições, documentos, obras culturais e práticas educativas que procuram
evitar a repetição dos erros do passado.
Contudo, o caminho iniciado em
Nuremberga está longe de estar concluído. A justiça internacional enfrenta
desafios persistentes, como a selectividade dos julgamentos, a resistência de
alguns Estados à jurisdição internacional, e a dificuldade de garantir a
imparcialidade e eficácia dos tribunais. A
universalidade dos direitos humanos, embora afirmada em teoria, continua a ser
posta à prova em múltiplos contextos. Neste sentido, Nuremberga não é
apenas um capítulo encerrado da história; é um compromisso contínuo com a
justiça, a dignidade e a humanidade. Recordar Nuremberga é afirmar que a
civilização não se mede apenas pela sua capacidade de criar, mas também pela
sua coragem de julgar. É reconhecer que a justiça não é um privilégio dos
vencedores, mas um direito de todos. E é, acima de tudo, renovar o pacto ético
que nos une enquanto comunidade global; o de nunca mais permitir que o silêncio, a
indiferença ou o medo sejam cúmplices da barbárie.
Bibliografia
Embora o ensaio tenha sido
redigido sem referências explícitas, estas obras e fontes são recomendadas para
aprofundamento académico sobre o Julgamento de Nuremberg:
- Telford
Taylor - The
Anatomy of the Nuremberg Trials: A Personal Memoir
- Robert
E. Conot - Justice
at Nuremberg
- Ann
Tusa & John Tusa - The Nuremberg Trial
- Michael
R. Marrus - The
Nuremberg War Crimes Trial 1945–46: A Documentary History
- Simone de Beauvoir - A Força das Coisas
(reflexões sobre o pós-guerra e justiça)
- United
Nations Archives - Charter
of the International Military Tribunal – London Agreement 1945
- Raphael Lemkin - Escritos sobre
genocídio e crimes contra a humanidade
- Cassese,
Antonio - International
Criminal Law
- Geoffrey
Robertson - Crimes
Against Humanity: The Struggle for Global Justice
- Documentos oficiais do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg
(1945-1946)

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